Podemos dizer que o estudo sobre os sonhos é milenar e que ele há tempos atravessa o ser humano, com seus mistérios e sua fisiologia. Povos originários de diferentes regiões do planeta utilizavam, e ainda utilizam, os sonhos como forma de organização interna (subjetiva, individual) e externa (do grupo, do coletivo). Apesar de ancestral, contudo, o tema segue em alta, como é possível observar nas prateleiras dos títulos mais vendidos nas livrarias. Seja com viés antropológico, seja com viés neurocientífico, sonhar segue sendo algo que permeia e intriga a realidade de homens e mulheres.
Sonhar se basta. O ato de sonhar é, por si só, terapêutico, curativo e funcional do ponto de vista psicológico e emocional. Mas é possível ir além: lembrar dos sonhos, compartilhá-los, mergulhar em suas profundezas, colher seus mistérios, significar o indizível, simbolizar o caminho. Gosto muito da imagem de que sonhos são cartas escritas por você a você mesma(o). Páginas que o nosso inconsciente profundo nos escreve e nos entrega, muitas vezes um tanto rabiscadas, um tanto fora de ordem, um tanto misturadas.
Nas psicoterapias analíticas e corporais o sono é visto como um momento em que nossas defesas psíquicas ou egóicas estão mais arrefecidas, favorecendo o inconsciente a se manifestar de maneira mais livre. Durante a fase específica do sono na qual sonhamos, o relaxamento da estrutura muscular estriada antagoniza-se com a excitação autônoma do sistema nervoso. Nesse estado, a energia psíquica encontra caminhos de expressão que – durante a vigília – costumam estar mais bloqueados. Outra frase que digo sempre aos meus pacientes: há coisas que só enxergamos de olhos fechados.
Contudo, ao contrário do que o senso comum supõe, não sonhamos apenas com a mente, sonhamos com todo o corpo. E é nesse intenso fluxo corporal que se abre quando as defesas psíquicas dão uma trégua que os sonhos ampliam nossa consciência sobre quem somos, sobre o nosso jeito de estar no mundo, sobre os conflitos psíquicos presentes na nossa jornada de evolução pessoal, sobre o passo atual que desejamos dar nos nossos desafios e – quem sabe até – sobre os passos futuros que a nossa inteligência profunda anseia.. Não é raro, durante o sonho, as imagens serem confusas, mas emoções serem vivas, pulsantes e muito lógicas.
Trazer à tona os símbolos do sonho, atribuindo a eles um significado compartilhado pela cultura, pode nos curar de nossa visão turva sobre as páginas rabiscadas. Mas me parece importante ir além, pois é preciso lembrar que cada sonho nasce de uma pessoa única, com um estrutura única, vivendo um momento único, em um tempo único, com aspectos de vida também únicos. É sobre reviver e sentir o sonho como se estivéssemos ainda lá e voltar com chaves corporais mais apuradas sobre onde estamos nos perdendo de nós mesmos, onde estamos enganchados, onde estamos desconectados, e – o mais potente – quais os caminhos de reencontro com o nosso pulso vital estão disponíveis.
Sonhar é um exercício, uma prática, e também um ritual. É possível tornar-se um bom sonhador, uma boa sonhadora, ainda que nunca se tenha sido. Pode ser um caminho de reconexão interna, um instrumento terapêutico que facilita evoluções consistentes com a nossa inteligência do Ser, mudando nossa postura – física, emocional e existencial – diante da vida.
Também acredito no caminho inverso: que o inconsciente leva algo que estamos trabalhando na terapia para o mundo dos sonhos, para que possa ser elaborado, desbloqueado ou integrado no corpo. Ainda que não tenhamos essa consciência, lá nos sonhos o trabalho terapêutico não pára nunca, nosso inconsciente está sempre nos escrevendo cartas, pois somos escritoras e escritores dos nossos sonhos. Mesmo quando escolhemos não abrir o envelope.
E você, lê as cartas que você escreve? Ou será que as cartas se acumulam esquecidas na caixinha do lado de fora? Ou será que você as lê e por não compreendê-las, considera que não são seus aqueles escritos? Ou será que você lê e compartilha as histórias com alguém disposto e pronto a ouvir profundamente os mistérios das suas cartas?
Vem mergulhar. Vem ouvir você.